
Calor insuportável. Até a alma estava pegajosa,grudava na pele como pasta-de-dente no mármore.
Pressa,agonia. Cabelos ressecados ao vento,com as pontas duplas incômodas.
Saltos abastados,batiam para lá e para cá e eu ia despreocupada. Livre,leve e solta.
Só quem me viu gritando na calçada,pode descrever o que se sucedeu. Uma barata simpática (sim,eu achei simpática!),me olhou com um dos seus 60 omatídeos ou todos eles e tentou uma aproximação. Devia ser uma barata-macho,pois aproximou-se com cautela e ginga para que eu não corresse desengonçada e supreendentemente,eu não o fiz imediatamente. Culpa dos meus impulsos nervosos retardatários? Talvez.
Ou talvez algo naquela casca-espelho,translúcida e metade preta, tenha me cativado.
Estava um pouco acima do peso das baratas. Se fosse menina,certamente,pareceria comigo. Íamos as duas, apressadas e desengonçadas pela manhã afora. Não devia estar me esperando e sim indo de bueiro a bueiro,mas com tantas baratas,por quê ela quis logo se aproximar de uma humana?
Ela parou do meu lado,há uns 30 cm. Esperava um sorriso ou aconchego com o olhar,mas eu fiquei estática, e tudo que fiz,foi tentar entender a falta de movimentos. O que nela me prendia?
Passaram uns 5 segundos e ela já se sentia segura ao meu lado,quando eu gritei num surto histérico: AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA! Tio,mata esta barata! Mata!
É mais um dos dogmas sociais: mulheres e baratas não se aproximam. Como eu,uma menina tão higiênica e fresca,podia dividir a calçada com aquele ser invasor que sempre foi asqueroso?Não,não sou asquerosa como ela. Ela estava respirando meu ar e podia,agressivamente,invadir minha pele,que já estava suada com todo o peso da minha alma pegajosa.
A barata ficou atordoada,eu já era quase um alicerce no mundo frágil e solitário das baratas.
Ela já esboçava algum sentimento,me contaria seus problemas de rejeição e seus traumas de falta de atenção,devido aos 1.001 irmãos. Como devia ter sido,até então,difícil sua vida!
E agora,eu,uma possível amiga,mandava matá-la. Ela se afastou,relutante,a medida que minha voz aumentava. Eu não me preocupei mais,egoísta que sou. O importante é que ela estava longe de mim,provavelmente,chorando em algum bueiro escuro e sozinha.
Continuei meu dia.
Logo após,uma baratinha. Pequena,miudinha. Uma barata bebê. Andava e andava pela minha mão. Maldito calor!
Pensei que fosse uma formiga e deixei. Quando vi que era uma barata,com a mesma violência se que expulsa um bebê do útero,eu a joguei longe!
(desculpem,baratas,amanhã,serei uma pessoa melhor! mas não se aproximem!)